A
conclusão do Parecer 54 indica que a Comissão Consultiva
Nacional de Ética (CNNE) não está muito segura de
si quando afirma "a distinção fundamental que deve
ser estabelecida entre a clonagem não reprodutiva de células
humanas, incapazes de gerar por si só seres humanos (...) e a clonagem
reprodutiva destinada ao nascimento de uma criança".
Querendo
ao mesmo tempo condenar a clonagem que leva ao nascimento de uma criança
e salvaguardar as técnicas tradicionais da clonagem, a Comissão
opõe uma técnica que considera reprodutiva a uma outra que
não o seria. Admira-nos que a CNNE chegue a tal conclusão,
uma vez que, ao longo de todo o relatório que produziu, se fala
da natureza intrinsecamente reprodutiva de qualquer tipo de clonagem e
do seu interesse estritamente terapêutico. Percebe-se mesmo o tamanho
do seu embaraço quando chama "não reprodutiva"
à clonagem de que é partidária...
Tal confusão não deixou indiferentes
os "bioéticos". A partir desta data impôs-se uma
outra distinção. Com efeito, admitiu-se que existisse uma
forma de clonagem que podia não ser considerada nem "reprodutiva"
nem "não reprodutiva" e a que se chamaria "clonagem
terapêutica". Doravante, a controvérsia passaria a opor
os partidários da "clonagem terapêutica" (em ordem
a reproduzir células incapazes de gerar só por si seres
humanos) aos partidários da "clonagem reprodutiva" (em
ordem ao nascimento de uma criança).
De qualquer modo, a reprodução de
elementos do ser humano vivo continua a estar na base de todo o tipo de
clonagem, mesmo da "clonagem terapêutica". É evidente
que esta nova denominação apenas oculta o mal-estar expresso
no Parecer atrás citado.
De
qualquer modo, a reprodução de elementos do ser humano vivo
continua a estar na base de todo o tipo de clonagem, mesmo da "clonagem
terapêutica". É evidente que esta nova denominação
apenas oculta o mal-estar expresso no Parecer atrás citado."O
gruo considera eticamente inaceitável a criação de
embriões a partir de dons de gâmetas em ordem à obtenção
de células embrionárias, uma vez que os embriões
supranumerários representam uma fonte alternativa disponível.
Seria prematuro criar embriões por transferência de células
somáticas para resolver necessidades de investigação
sobre a terapia".
Utilizar
embriões "supranumerários" com uma intenção
terapêutica manifesta a mesma intenção eugenista que
produzi-los com esse objectivo
O
mal-estar reside, pois, não só na incapacidade de dizer
que toda a clonagem é reprodutiva mas, e principalmente, na de
estabelecer uma distinção clara entre as três intenções
que presidem à clonagem:
1ª a intenção terapêutica, que aceita a actual
clonagem de células ou de órgãos adultos, na perspectiva
de um implante;
2ª a intenção oportunista, que admite a possibilidade
de se obterem células embrionárias a partir de embriões
já constituídos, no âmbito de uma assist~encoa médica
á procriação;
3ª a intenção eugénica, que cria e faz clonagem
indiscriminada de embriões, quer para os utilizar como "utensílios",
quer para os fazer viver como "clones".
Agora que foram eliminados os falsos debates,
se admitiu que o eugenismo contemporâneo não tem nada a ver
com o eugenismo da época precedente - uma vez que aquele intervém
antes e este intervinha após o nascimento - e foram varridas as
referências à aniquilação pela eutanásia
(referências que permitiam considerar o aborto como um acto de aniquilação),
pode-se compreender que biólogos e médicos contemporâneos
se deixem embalar pelo desejo de purificar o Homem, que apostem num pretenso
aperfeiçoamento da espécie humana e que a lei faça
bem em se lhes opor.
Tudo é claro quando sabemos que James Watson,
Prémio Nobel, afirmou: "Será preciso que alguns tenham
a coragem de intervir na herança genética mesmo sem ter
a certeza do resultado. Aliás, e ninguém o ousa dizer, se
pudéssemos vir a criar seres humanos melhores, graças à
adição de genes provenientes da plantas ou de animais, porque
nos havíamos de privar disso? Qual é o problema?"
Também é claro quando se vê
Michael West, presidente da Geron Corporation, insistir no interesse de
se multiplicarem os meios de criação de embriões
humanos, capazes de fornecer células embrionárias, propondo
mesmo que se utilizem para esse fim óvulos de vacas como incubadoras
celulares.
É ainda claro quando se verifica
que esta criação de embriões se confina ao contexto
humano, como é, neste momento, o caso da Grã-Bretanha. Com
efeito, Michael West e o Parlamento Britânico colocam-se deliberadamente
na perspectiva de obter células embrionárias para fazer
progredir as terapêuticas, mas tanto uns como outros sabem com toda
a pertinência que os investigadores poderiam proceder de outra forma
e utilizar outras estratégias. É por isso que os critérios
da sua escolha não são científicos nem técnicos
mas eugénicos.
A título de exemplo pela inversa, temos de aceitar
a ideia de que a perspectiva eugenista não está ligada à
técnica de transferência de núcleo, a qual se identifica
sem razão com a clonagem, quando pensamos que não há
outra via possível para que as mulheres com doenças mitocondríacas
possam ter filhos.
Contudo, é muito mais difícil argumentar
acerca das intenções do que acerca das capacidades técnicas.
É mesmo fácil pensar que a intenção inicial
importa pouco, desde que se atinja o resultado. Mas a verdade é
que tudo se passa ao nível da intenção; é
aí que se exprime o mal-estar.
Neste contexto, utilizar embriões ditos
"supranumerários" numa perspectiva terapêutica
manifesta, num dado momento, a mesma intenção eugenista
que produzi-los com esse objectivo. Daí o seu duplo oportunismo.
Na verdade, a diferença é muito ténue; é certo
que, num caso, o cientista se arroga o direito de produzir um homem e
que, no outro, apenas se aceita o direito de o utilizar. E, ao fim e ao
cabo, utilizar o homem no estado embrionário não será
apenas o outro extremo da cadeia de sobrevivência que começa
por utilizá-lo no estado mortal, quando se trata da colheita de
órgãos? Mas comparação não é
razão. No caso da utilização de embriões supranumerários,
se houver consentimento dos pais, isso significa que a sociedade admite
que um casal possa livremente decidir, primeiro, reproduzir-se e, depois,
transformar o produto da sua concepção assistida em fonte
do órgãos. A menos que a dita sociedade de dispense de obter
qualquer consentimento, o que seria uma forma de fazer desabar o consentimento
para uma espécie de "dead letter office".
Este mal-estar e a sua tentativa de resolução
numa língua embaraçada e em actos contraditórios
exprimem a grande dificuldade de os cientistas, os médicos, o legislador
e todos os actores dos campos biomédicos e bioéticos terem
ideias claras sobre o que se chama "eugenismo". Neste contexto,
nada seria mais grave do que reduzir a ética a um alibi. O alibi
é o que permite que se instalem e funcionem falsas solidariedades
conceptuais, primeiro na má consciência, depois na negação.
É muito importante manter um limite entre
a perspectiva terapêutica e a perspectiva eugénica, sem o
que, com esse ritmo, o debate acabará por opor os que justificam
a priori a clonagem de alcance eugénico aos que a justificariam
a posteriori.
Gerard
Huber
Psicanalista
Autor de L'Homme Dupliqué, L'Archipel, 2000
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